domingo, 14 de outubro de 2012

O Ter e o Ser



     O Novo Testamento continua o protesto do Antigo Testamento contra a estrutura de existência baseada no ter. O seu protesto é ainda mais radical do que tinha sido o dos judeus. O Antigo Testamento não era produto de uma classe oprimida. Ele surgiu dos criadores de carneiros e camponeses independentes. Um milénio mais tarde, os fariseus, os eruditos, cujo produto literário foi Talmude, representavam a classe média, que engloba membros muito pobres e alguns muito bem colocados. Ambos os grupos estavam imbuídos pelo espírito da justiça social, a protecção dos pobres e o apoio aos desamparados, como viúvas e minorias nacionais (gerim). Mas, no seu todo, não condenavam a riqueza como sendo incompatível com o princípio de ser (livro de Louis Finkelsteins sobre Os fariseus).

    Os primeiros cristãos, pelo contrário, foram principalmente um grupo de indivíduos pobres, socialmente menosprezados, oprimidos e proscritos, que – com alguns profetas do Antigo Testamento – criticaram severamente os ricos e poderosos, denunciando sem atenuantes. (Ver The Dogma of Christ – O Dogma de Cristo.) Efectivamente, como afirmou Max Weber, o Sermão da Montanha foi o grande discurso de rebelião de um escravo. O tom dos primeiros cristãos era o da total Solidariedade humana, por vezes expressa pela ideia de uma partilha comum espontânea de todos os bens materiais. (A.F.Utz discute a posse comum dos primeiros cristãos e os primeiros exemplos gregos, dos quais Lucas, tinha provavelmente conhecimento.)

     Este espírito revolucionário do cristianismo original surge com particular nitidez nas versões mais antigas dos evangelhos, tal como eles foram conhecidos nas comunidades cristãs que ainda não se tinham separado do judaísmo (estas versões mais antigas podem ser reconstruídas da fonte comum de Mateus e Lucas e foi-lhe dada a designação «Q» (do alemão quelle, «fonte») pelos especialistas da história do Antigo Testamento. O trabalho fundamental existente neste domínio é o Siegried Shulz, que faz a distinção entre a antiga e a recente tradição de «Q» 2

     Aí encontramos como postulado central que as pessoas se devem libertar de toda a avidez e ânsia de posse, afastando-se totalmente da estrutura de ter, e que todas as normas positivas têm a sua raiz nas éticas de ser, de Partilhar e na Solidariedade. Esta postura ética é aplicada tanto à relação do indivíduo com os outros como à sua relação com as coisas. A renúncia radical dos seus próprios direitos (Mateus 5:39-42 Lucas 6:29s) assim como a determinação de cada um amar os seus inimigos (Mateus 5:44-48 Lucas6:27s 32-36) é ainda vincadamente de forma radical do que o «ama o teu inimigo» do Antigo Testamento. Uma preocupação total com os outros seres humanos, a completa rendição de todo o egoísmo, a norma de não julgar os outros (Mateus 7:1-5 Lucas 6:37,41 s) e dedicar-se inteiramente à compreensão e ao bem-estar do outro.

       Ainda em relação às coisas, é exigida a total renuncia à estrutura do ter. A comunidade mais antiga insistiu na renúncia radical à propriedade; previne contra a acumulação de bens: «Não acumuleis tesouros na terra, onde a ferrugem e a traça os corroem e s ladrões arrombam os muros, a fim de roubar. Pois onde estiver o teu tesouro, aí estará o teu coração» (Mateus 6:19-21; Lucas 12:33s). É dentro do mesmo espírito que Jesus diz: «Bem-aventurados vós, os pobres, porque vosso é o Reino de Deus» (Lucas 6:20; Mateus 5.3). De facto, o cristianismo original era uma comunidade de pobres e sofredores, com a firme e apocalíptica convicção de que tinha chegado a hora de a ordem existente desaparecer, de acordo com os planos de salvação de Deus.

       (….) Após Constantino foi feita a tentativa no sentido de substituir o papel mediador de Jesus pela igreja papal. Por fim a igreja tornou-se o substituto – de facto, embora não em teoria – do novo eós.
       Há que levar o cristianismo original mais a serio do que tem sido feito pelas maioria da pessoas a fim de que possamos compreender, o que inacreditável radicalismo deste pequeno grupo  que respondeu ao mundo de então apenas as suas convocações morais. A maioria dos judeus, por seu turno, não pertencendo exclusivamente ao sector mais pobre e oprimido da população, escolheu uma outra via. Recusando-se a acreditar que uma nova ordem tinha começado e continuaram a esperar pelo Messias, que viria quando a Humanidade (e não apenas os judeus) tivesse atingindo o ponto onde o domínio da justiça, paz e amar pudessem ser estabelecidos num sentido mais histórica do que escatológico.

       A jovem fonte «Q» tem origem num estádio mais avançado do desenvolvimento do cristianismo primitivo. Aqui, também, encontramos o mesmo princípio e a história da tentação de Jesus por Satanás expressa-a de forma sucinta. Nesta história, o desejo ter as coisas, a ânsia do poder e outras estruturas do ter, são condenadas. À primeira tentação – transformar pedras em pão, expressando simbolicamente a ânsia das coisas materiais – Jesus responde; «Está escrito: nem só do pão vive o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus» (Mateus 4:4; Lucas 4;4). Em seguida, Satanás tenta Cristo com a promessa de lhe dar plenos poderes sobre a Natureza (mudando a lei da gravidade), e por fim, com o poder irrestrito, o domínio de todos os Reinos da terra, e Jesus recusa (Mateus 4.5-10; Lucas 4.5-12). Rainer Funk chamou a minha atenção para o facto de a tentação ocorrer no deserto assim o típico do Êxodo).

      Jesus e Satanás surgem aqui como representantes de dois princípios opostos. Satanás reflecte o assunto material e o poder sobre a Natureza e o Homem: Jesus é o representante de ser e da ideia de que não ter é uma premissa para ser. O mundo segue os principios de Satanás desde o tempo dos evangelhos. Contudo, nem mesmo a vitória desse principio consegui destruir o desejo de realizar o pleno ser, expresso por Jesus, assim como por outros grandes mestres que viveram antes e depois dele.
      O rigor ético que rejeita a orientação para o ter encontra-se igualmente nas ordens judaicas, tais como os Essénios e a ordem de onde são originários os Manuscritos do mar Morto. Ao longo de toda a história de cristianismo ela tem-se mantido nas ordens religiosas que se baseiam no voto de pobreza e na rejeição da propriedade.

    Outras manifestações dos conceitos radicais dos padres que nesta matéria são também influenciados pelo pensamento filosófico grego sobre a questão da propriedade privada versos propriedade publica. A falta de espaço não permite discutir detalhadamente estes ensinamentos e menos ainda a literatura teológica e sociológica sobre o assunto ainda que existam algumas diferenças para a visão menos radical, à medida que a igreja se vai tornando uma instituição poderosa.
     É inegável que os primeiros pensadores da igreja partilharam a condenação do luxo e da avareza e manifestaram desprezo pela riqueza em excesso (…)

In "O dinheiro e o sentido da vida" Jacob Needleman
       

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